quinta-feira, 19 de junho de 2008

Texto de Manuel António Pina

Este texto foi escrito por Manuel António Pina, em 1998, para a minha exposição individual no Solar dos Zagallos, em Sobreda da Caparica. Era um Solar que se tinha transformado num museu dedicado á cerâmica, com exposições permanentes, temporárias e oficinas para adultos e crianças, estava na responsabilidade da Câmara Municipal de Almada. Não sei se ainda existe este museu.

O Domínio do Fogo
Arte fulgurante, a cerâmica participa de modo literal do mistério alquímico fundamental da purificação e da regeneração. Como o poeta – ferreiro taoista na sua forja ou o alquimista ao forno, o ceramista está no centro do mundo, pequeno deus demiurgo arrancando o ser à matéria bruta e ao não ser. Do barro, espécie de caos original, o ceramista “separa” laboriosamente formas e identidades. O seu trabalho é, por isso, de natureza estruturalmente dia-bólica (isto é, cosmogónica e criadora); talvez então a vocação sim-bólica de toda a arte seja a “saudade” do estado edénico e da unidade primordial.
A arte de Sofia Beça evidencia tanto esta origem terrestre como este destino celeste, o barro informe como a presença do fogo criador e regenerador. Cada uma das suas peças parece dividida, dilacerada entre céu e terra, vida e morte, condensação e sublimação. Quem estranhará que as suas formas se abram em movimentos convulsos ou expludam em vermelhos vulcânicos e em negros fundos e inquietos ?
Às vezes, no entanto, dir-se-ia que o sofrimento das formas por momentos se suspende e que elas se espraiam então em calmos painéis e labirínticas ordens cromáticas, quase até ao decorativismo. Mas depressa as cores de novo obscurecem, os volumes se intensificam e pesadas nuvens de tempestade se acumulam nos vidrados.
Porque o ceramista está perto de mais.
Tanto da matéria como da chama. E também ele em ambos arde e se consome.

Manuel António Pina
Setembro de 98

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