terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Texto de Alejandro Ratia para a exposição "Que caminho percorres tu"


CAMINHOS E SINAIS

Deambular supõe caminhar sem propósito. Vários dos trabalhos mais recentes de Sofia Beça aludem a esta ideia. “Deambulando”, por exemplo, é o título do políptico formado por quarto quadrados seguidos. Em cada um deles, as formas vão crescendo até ocuparem por inteiro o último deles. Podemos interpretar esta obra como uma espécie de rio que se alarga, ou então podemos entendê-la como um túnel claustrofóbico, numa sequência cinematográfica de quarto estados durante a qual se assiste ao caminhante a chocar contra uma parede e a regressar, mas a regressar através de um caminho alternativo para, no final, a cobrir com o seu caminhar sujo e errático a superfície total do seu mundo. Um mundo que se reduz a esse quadrado, a que os passos dele acabam por dar uma forma viva. Em certa medida, toda a arte supõe a construção de um mundo. Um mundo que os outros são também convidados a habitar e que preserva uma relação metafórica com o real. Esse quadrado de grés é um microcosmos. O caminhar significa conhecer, ou seja, refere-se à linguagem. A palavra determina o conhecimento. As lajes paralelas de cerâmica que se organizam como gestos, delimitados em pinceladas, criam um caminho repleto de incertezas e de rectificações.

Os artistas dão sentido ao seu deambular sem sentido. Caminhar é uma atitude activa que se contrapõe à actividade passiva do olhar. A forma como Van Gogh pintava tinha algo que ver com esta ideia, ou também com a forma (que associamos a Pollock) de abordar as superfícies em sobrevoo, desenhando caminhos sobre elas. Sean Cubbit disse uma vez que “cabe aos artistas devolver ao caminho a sua profunda temporalidade, fazer dos sons e da textura da viagem uma negociação, um diálogo liberto do férreo governo da gramática pela necessidade de criar sentido e de fazer com que o termo ‘sentido’ inclua todos os sentidos”. Uma das missões do artista é a de recuperar a consciência das distâncias, a de voltar a associar o caminho ao tempo e de promover a proliferação de sentidos e possibilidades alternativas de recurso ao que, no final, acaba por ser um labirinto. A alusão a esse sentido capaz de agregar todos os sentidos lembra-nos esse quadrado final, coberto de formas arbitrárias, do políptico de Sofia Beça.

Falamos de caminhos e falamos de tempo. Que Sofia seja ceramista nada tem de anedótico. No caso da cerâmica, o tempo é um factor tão importante como o barro e o calor. Na catalogação das peças faz-se referência ao tipo de barro, ao tipo de forno e até mesmo à temperatura. Falta apenas indicar o tempo. Esse tempo instala também uma incerteza. Olho para as fotografias que a Sofia me envia, vejo-a junto ao forno de lenha em espera activa, uma espera que pode chegar às nove horas e que exige atenção continua. “Vou cortando lenha”, conta-me ela, “e controlando o forno até chegar ao ponto em que não saio da frente dele nem por um segundo, para o ir alimentando”. O tempo de arrefecimento é igualmente extenso. Depois abre-se e descobre-se. A margem de erro é o que conduz ao acerto. A trabalhar nas suas peças deambulatórias, antes de as introduzir no forno, Sofia parece estar a regular o fluxo de diversas correntes de água, ou então do vento, algo intensamente dinâmico e que os dá a impressão de se imobilizar ao olharmos, uma vez que ele é uma expressão do próprio movimento.

Outra das peças intitulada “Deambulando” está delimitada por pequenos azulejos. O desenho composto recorda-nos os mapas e as suas curvas de nível. A artista transforma-se em topógrafa. Descreve ou inventa uma paisagem. E dentro dessa actividade topográfica encontra-se também a marcação de território através de marcos ou pontos geodésicos. Estas marcas modernas convivem com outras mais tradicionais, muitas vezes ligadas ao culto religioso, como por exemplo cruzes ou estrelas. Uma das principais funções da escultura foi precisamente esta: a demarcação de limites. O que significa também dotar o território de um sentido, uma função primordial a que Sofia Beça regressa. Uma das suas obras mais interessantes intitula-se “Delimitação de Território”, semelhante a uma alienação de menires, como o famoso alinhamento megalítico de Carnac, embora também existam alguns do género em Portugal. Estas “delimitações” marcam uma fronteira simbólica e podem servir para separar o profano do sagrado. É precisamente isso que acontece nesta obra. No entanto, em Trás-Os-Montes, onde a artista cuida do seu forno de lenha, é ainda com pedras que se demarcam os terrenos. Poder-se-á aqui aludir a uma política do território, se aqui introduzirmos os títulos de propriedade ou os sinais de conquista. Todas estas peças são de sentido dual. Têm a forma de um marco ou de baliza. A metade inferior é lisa, a superior mais trabalhada. O motivo que a ocupa tem uma função semântica e pode ler-se como antigamente se liam os totens ou os brasões dos escudos medievais. Um desenho geométrico que deriva em código.

As dualidades abundam na linguagem artística de Sofia Beça. Quando decidimos que algo deve ser expresso em branco sobre negro, damos conta de que a linguagem necessita de um código dual. Em “ Regresso às Origens” reinterpreta-se o motivo do tabuleiro de damas, próprio da tradição da azulejaria portuguesa. O monótono tabuleiro preto e branco cria um território virgem dentro do qual a linguagem pode jogar. Em “Marcamos em Par” cruzam-se dois motivos, o dos sinais o limite dos caminhos, e o da dualidade. São como duas abas de duas cores. No limite, ou na encruzilhada, surgem muitas vezes os dilemas. Devemos escolher uma ou a outra cor, um ou o outro caminho da encruzilhada. Não obstante, julgo que Sofia Beça nos fala em termos de síntese ou de acordo. Em “És a Minha Sombra”, a artista alude à necessidade de lidarmos com o nosso passado, bom ou mau. Uma forma de superação por via da dualidade. O motivo do caminho tem também que ver com isto. Não importaria tanto a origem ou o destino como o percurso intermédio. A dimensão artesanal da cerâmica implica uma disciplina, um caminho de aprendizagem que nunca acaba. Este princípio parece fazer parte da estratégia pessoal de Sofia Beça. No entanto, ela usa-o também em termos de linguagem, de modo a expressar conceitos ao mesmo tempo eficazes (ou concretos) e poéticos (ou ambíguos). O Tao assume que caminhar não é apenas marchar mas também parar: Uma questão dual: o yang como movimento, o yin como imobilidade.

O território pode ser transformado em objeto de sacralização, mas também de devastação. Os incêndios que ocorrem consecutivamente nas florestas portuguesas (e galegas) são um dos exemplos mais terríveis desta destruição da natureza. O ano de 2017 foi especialmente trágico. O fogo queimou uma imensa massa de floresta, destruiu casas e levou um número esmagador de vidas. A instalação "Floresta Portuguesa" é uma elegia dedicada a essas árvores e a essas pessoas. Apresenta-nos uma floresta de troncos segmentados e petrificados. Por entre os fantasmas das árvores, vemos uma fotografia de Rui Pinheiro que reflecte vestígios da presença humana no meio da desolação. Esta obra, de ressonâncias trágicas, mostra uma vez mais que Sofia Beça é uma artista aberta à vida, que deseja firmar as suas experiências e os seus compromissos através da cerâmica, que se encontra aberta à experimentação e colaboração com outras meios e disciplinas, tais como a fotografia ou a música. O ambiente sonoro de Jorge Queijo surge como um elemento-chave neste projecto expositivo que também se quer colectivo.

Sofia Beça não cessa de aprender nem de se mover. A experiência e a filosofia do Oriente foram integradas no seu trabalho, sobretudo depois da sua recente e intensa estadia na China. Duas coisas importantes regressaram com a artista depois desta viagem: por um lado, a experiência mágica da paisagem chinesa, em particular a das montanhas, e por outro lado, o uso da porcelana. Sob a epígrafe “Made in Jingdezhen”, ela apresenta-nos uma série de peças feitas com esta material, que até à data a artista nunca tinha usado. Jingdezhen é a cidade da porcelana. Grande parte da sua população dedica-se a esta arte. Sofia Beça recolheu ensinamentos dessa tradição, transladando-as depois para a linguagem contemporânea. A artista reconhece a porcelana introduziu outras transparências, outras cores, mais suaves e mais abstractas, e uma maior feminilidade ao seu trabalho. Também confessa que isto a conduziu a territórios mais próximos da pintura. Na China elaborou flores esquemáticas, feitas com gestos muito simples. Às vezes multiplica-as, outras, com grande subtileza, isola-as, sendo a protagonista da peça uma única e pequena flor. Introduz-se também o círculo como espaço e suporte, uma noção que está muita ligada à cultura chinesa. Entre as fotografias que Sofia Beça trouxe consigo da viagem, inclui-se uma colecção de portas redondas – as chamadas “portas-lua”. Se grande parte do trabalho anterior de Sofia Beça se ancorava no Sol, e numa certa rudeza da luz e dos seus contrastes na superfície do grés, estas novas obras “chinesas” parecem ter sido elaboradas sob a influência alternativa da Lua.

Alejandro Ratia
 Escritor e Critico de arte
 Outubro 2018

Sem comentários: